A Conferência Episcopal publicou em agosto as conclusões do processo sinodal. No documento, enviado para Roma, reconhece-se que os católicos portugueses vêem a Igreja como instituição «exageradamente centrada na autoridade e ação do clero», insistindo numa «atitude demasiado hierárquica, clerical, corporativa ( ... ), que prioriza a manutenção da sua imagem ao invés de preservar a segurança da sua comunidade, surgindo os casos de pedofilia como o exemplo mais evidente». Nada disto é novidade.
O Papa Francisco, na Carta ao Povo de Deus de 2018, dizia que tentar «reduzir em pequenas elites o povo de Deus» resulta em «comunidades ( ... ) sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas». Francisco criticava o clericalismo, «modo anómalo de entender a autoridade na Igreja», e apontava--o como uma causa da crise dos abusos, que tem exposto a real natureza da Igreja contemporânea: a de uma instituição de poder neste mundo (cf. Jo 18:36).
A Igreja é hoje uma instituição de poder. Como todas as instituições de poder (político, económico ou social), deve prestar contas àqueles sobre quem o exerce-os fiéis, em particular; e a sociedade no geral, que por via do Estado lhe reconhece um estatuto especial.
Esta evidência continua a ser contestada pela Igreja em Portugal. Por bispos que consideram não ter de responder às questões dos jornalistas, por organismos que pensam responder apenas perante as hierarquias internas da Igreja e, especialmente, pelos que durante décadas ocultaram das autoridades e da sociedade escândalo do abuso. Aqueles que, hoje, se justificam com a mesma subversão da autoridade denunciada pelo Papa, afirmando que a Igreja resolveu os problemas internamente, sob o manto dos seus segredos. No limite, argumentando que a Igreja investigou os crimes de que teve conhecimento, pelo que não tinha obrigação de os denunciar à polícia.
O discurso de muitos bispos católicos nos últimos anos é a expressão do problema do clericalismo denunciado pelo Papa. Não só a Igreja decidiu deliberadamente conter dentro dos seus muros centenas de crimes gravíssimos, assumindo ilegitimamente as funções das autoridades policiais e aplicando a sua própria justiça à revelia do Estado, como elevou a fasquia da impunidade ao assumi-lo como prática natural. Sabemos, hoje, que o fez para proteger o seu poder.
Perante isto, podemos questionar: será o poder uma vocação da Igreja? É isso que se encontra nos Evangelhos?
O que aconteceu ao longo de dois mil anos para que a Igreja de Jesus, assente numa proposta radical de serviço e de amor, desprovida de ambições de poder, se tenha praticamente convertido numa poderosa multinacional, com uma hierarquia fechada e elitista?
Uma Anatomia do Poder Eclesiástico, livro publicado pela Universidade Católica Editora, oferece uma perspetiva enriquecedora sobre a «subversão da natureza e missão da Igreja», descrita logo nas primeiras páginas desta obra escrita a muitas mãos por especialistas autorizados do nosso país e coordenada por João Eleutério.
José Manuel Pereira de Almeida lembra que o Evangelho sempre deteve a chave para a compreensão da autoridade na Igreja. Por seu turno, João Eleutério explica como, na história da Igreja, a ministerialidade do serviço se esvaziou e subverteu, num processo de transformação numa autoridade civil, associada às lógicas feudais e à coroação dos reis e imperadores na Europa. Gradualmente, o poder deslocou-se da comunidade de fiéis para a elite do clero.
O livro aborda ainda os perigos da atuação do clérigo in persona Christi, expressão que, durante séculos, legitimou todo o tipo de abusos de autoridade, como esclarece Peter Stilwell. Já Rita Mendonça Leite esboça uma crítica do clericalismo, classificando-o não apenas como desvio, mas como retrocesso: ao colocar o padre no centro da ação da Igreja, o clericalismo recupera a barreira entre homens e Deus que Jesus aboliu.
Alfredo Teixeira descreve como o fenómeno da paroquialização da sociedade europeia, com a autoridade centrada no pároco, abriu portas a uma Igreja crescentemente clericalista. Alex Villas Boas dá pistas sobre o modo como a antropologia pessimista da natureza humana de Cornelius Jansen a partir de Santo Agostinho conduziu à ideia de que apenas um punhado de eleitos é capaz de distinguir o bem, pelo que os restantes lhes devem obediência cega - ideia hoje combatida pelo Papa, mas que ainda contamina parte assinalável do clero católico. O livro não termina sem uma reflexão profunda sobre o lugar do difícil perdão no contexto da crise dos abusos, por Sónia Monteiro.
Com linguagem clara e acessível, Uma Anatomia do Poder Eclesiástico é um contributo inestimável da Universidade Católica para a compreensão do momento definidor que a Igreja atravessa, oferecendo argumentos históricos e teológicos que explicam as raízes mais profundas da maior crise de identidade e credibilidade da Igreja contemporânea.
- João Francisco Gomes in Revista BROTÉRIA
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